quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Seduzo ou apareço?


Após uma curta investigação sobre o designer americano em questão —Alvin Lustig— sabemos que sobrevive hoje nas bocas de cada um e perdurou na história, pelo famoso trabalho que desenvolveu no design de capas de livros . O autor trabalhava primordialmente sobre elementos geometrizados, utilizando para tal a colagem e a foto-montagem. Lustig viveu numa altura na qual o design Europeu já se regia de uma forma mais escorreita e geométrica como "ordenava" o famoso design Suíço, enquanto que na América, o design era mais livre, genuíno e espontâneo. Ironicamente, o trabalho de Lustig foi também influenciado pelo trabalho de Jan Tschichold— famoso tipógrafo europeu.

O livro de Kafka fala-nos de uma viagem de um rapaz de 16 anos que emigra em busca do sonho Americano, iludido com este novo mundo. Quando chega apercebe-se de um várias injustiças sociais, quando procura ajudar amigos e acaba por ser despedido das funções que tem e a que se submete. Observando a imagem da capa deste livro, que já não é a própria capa do livro e muito menos é o pensamento de Lustig, mas sim a nossa interpretação da projecção de uma imagem que resolve o pensamento do designer, sentimos, sem antes saber nada sobre o a obra e sobre o designer, que terá a ver com a América ou que se passa mesmo na América. Primeiro comentário que surge—"De certeza que é uma história que se passa na América". Um comentário tão óbvio mas que nos diz que alguma coisa está bem resolvida, por muito básica que seja. Ao mesmo tempo sentimos trabalho e preocupação na imagem que Lustrig criou para ilustrar a obra de Kafka. Sentimos um entendimento que a nós não nos compete, por não conhecermos a obra ao pormenor, pois sente-se estudo e, mais importante, atenção ao conteúdo do livro em si. A estrela, as listras; o branco, o vermelho e o azul escuro, são os responsáveis pela persuasão e entendimento que obtemos desta capa.

É um problema comum hoje em dia. É feio ir a uma livraria. É triste querer um livro e todos eles serem iguais. É pena que seja já um design lerda e preguiçoso. É pena que não se sinta o design. O que entendemos desta obra que visitamos e criticamos, é que há um entendimento completo sobre a intenção de Kafka; há uma atenção à obra e uma vontade de ser fiel que nos permite quase conhecê-la sem a ter lido antes. Sentir que foi esta obra — "Amerika" de Franz Kafka— a responsável pela imagem a que assistimos, é o bom exemplo, como outros tantos, daquilo a que já não se assiste. Poucos, ou nenhum, se preocupam com o design de um livro. O comum é frequentemente encontrarmos, bem como em capas de CD's, imagens provocadoras, umas que nos atraem, outras que nos excitam, outras que se limitam a ofender e a perturbar-nos visualmente, outras que se destinam a ser correctas e sóbrias, mas que poucas não falam sobre o conteúdo de cada livro. Não nos mostram o que queremos ler, nem nos deixam com vontade de ler e querer interpretar a ideia que o autor nos propõe descobrir. Actualmente deparamo-nos com capas desprovidas de intencionalidade, com o claro objectivo gráfico que não comunica, mas se impõe, ficando assim com dois objectos que falam línguas diferentes. Já parece o texto de Alica Twemlow "When did postres became such Wallflowers?", que nos fala de um concurso de design que houve em Chaumont, um texto que critica o facto de os designers pouco se preocuparem com a mensagem que o cartaz se compromete a passar. Não deveria a capa de um livro querer ter o mesmo objectivo de um cartaz? Não quer?!

Olhando para a imagem do livro "Amerika" deste soberbo escritor, cuja obra mais conhecida é o tão bem famoso livro "A Metamorfose", sentimos uma certa comparação à viagem, ao pensamento, à espontaneidade, ao alheamento psicológico relativo a esta América que prometia a resolução de sonhos que a sociedade de então ambicionava concretizar. uma ilustração simples que questionamos, pois parece que foi feita ao sabor da viagem que a obra proporciona e nos convida a realizar.

Fica o sentimento de pena e uma dor leve dada a pouca sensibilidade artística que sentimos no design actual. Os livros hoje parecem não ter capa. Por mais bonita, elegante e sedutora que seja, é raro encontrar esta coerência verbal e gráfica entre um livro e a sua capa. Existe, mas não é comum. Eu, eu e eu não nos vestimos de qualquer maneira; todos nos arranjamos. Não terá um livro o mesmo direito?

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

"When Did Posters Become Such Wallflowers?"

Sobre: "When did Posters Become Such WallFlowers?" por Alice Twemlow

"In the remote hunting town of Chaumont, in the Northeast of France" deu-se a catástrofe. O artigo "When Did Posters Become Such Wallflowers?" faz uma crítica ao grande problema do Design, a capacidade de vender um produto. Alice Twemlow acusa o exercício de Design de ter vindo a evoluir de uma ferramenta de comunicação e organização de informação para qualquer coisa como uma masturbação visual ("João, pião, balão, pão!ão!ão"), onde pouco ou nenhum conteúdo existe em detrimento de uma solução final visualmente agradável.

De um sem número de posters e um cem número de obras de arte em formato "70x100", resta a ideia de que os Designers que participaram no concurso de Chaumont, do qual Alice foi júri, entenderam como conteúdo a própria participação na competição anual de Posters Europeus. Num concurso em que existem regras claras, onde todos os ttrabalhos têm que promover algo e ter sido publicados, é óbvio que é preciso haver uma distinção imediata entre o produto de um designer e o produto de um artista.

O que é certo é que, enquanto aspirantes a designers, temos vindo a sentir a avaliação feita por Alice, pois, tal como para o actor o palco é o espaço onde ele se mede perante uma plateia, o cartaz é a régua do Design. Somos constantemente invadidos e muitas vezes atacados com a informação que nos rodeia. Tanto é que se criou mesmo o pensamento de que vivemos numa autêntica roda viva, que não pára de girar e que a cada volta que dá nos espeta com mais mil produtos, ideias e exposições em cima (e obras de arte). Sentimo-nos contaminados e efusivamente "batidos" pelos posters e anúncios que nos chegam. Pomos a questão que sentimos ser de Alice também. Será que de uma perspectiva mais utópica seria melhor descartar toda a informação gráfica a favor da mensagem crua e despida de elementos ruidosos e altamente contagiantes?

Rapidamente nos deparamos com outro problema. Já todos os cartazes que vimos até este preciso momento em que lemos estas ásperas e rugosas palavras, estão fora de prazo. A mensagem está limitada a um espaço e a um tempo que lhe não é mutável nem impreciso. Vivemos de facto dentro desta roda viva que sobrevive da invenção e da re-invenção de produtos e concepção de novas ideias que nos definem enquanto sociedade. E por isso a mensagem é tão efémera e tão inútil entre tantas outras mensagens. Assim faz sentido complementar esta mensagem com elementos gráficos, de modo a criar impacto e destacar melhor a própria mensagem, sendo que os elementos gráficos ajudam a organizar e a hierarquizar o seu conteúdo.

Concluímos desde já que um cartaz muito bem conseguido, pode a partir do momento em que a mensagem morre, dissolvê-la no seu próprio aspecto gráfico e desta forma quebrar a barreira espácio-temporal imposta pela sua validade, perdurando, assim, na mente daquele que o absorve enquanto alarve social e humano que é. Uma coisa é um cartaz, que pode ser uma obra de arte. Outra coisa é uma obra de arte, que não pode ser um cartaz. Isto é, achamos que um póster, quando muito bem feito, pode vir a ser uma obra de arte depois de ter passado pela experiência de se validar enquanto mensageiro de um produto; mas quando este se destina a ser, prima facie, uma obra de arte ao invés da utilidade primeira de comunicar, não se molda a qualidade altruísta de um cartaz, pois não passa de um embelezamento rural e urbano — expressão de matéria individual.

Ainda hoje estudamos e tomamos como exemplo cartazes cuja mensagem expirou, como os bons exemplos do Dadaísmo, Bauhaus e Estilo Internacional. Modelos de cartazes que cumpriram o seu objectivo e que hoje sobrevivem pela sua pertinência e qualidade gráfica.

Entendemos a frustração de Alice e do júri do concurso de Chaumont. Muitos cartazes são óptimos a nível gráfico, mas se não transmite nenhuma ideia e se deles não esprememos o bom sumo de laranja, re- intitulamos o concurso para "Ilustrações Ultra Bem Feitas De Alto Teor Técnico E Gráfico Europeu De Chaumont". E fechou o tasco.

"O texto está bem escrevido. Escrevido ou escrito?"

Texto sobre a crónica de Paulo Pinto "Crónicas para Brutos", que por sua vez fala sobre a crónica de Henrique Raposo "O bullying de Sócrates sobre Seguro".

Crónicas para Brutos, por Paulo Pinto
Não é nada que não se esperasse. Mas não deixa de me causar impressão a forma como as crónicas, nos poucos e cada vez mais monocórdicos títulos da nossa imprensa escrita, venham gradual mas seguramente baixando a fasquia da exigência do discurso, da elevação da linguagem e da clareza da análise. Nos tempos em que a disciplina de "iniciação ao jornalismo" fazia parte dos planos curriculares dos 10º e 11º anos de escolaridade, foi-me ensinado que a "crónica" era algo de especial. Não era um "editorial", nem uma "notícia", muito menos uma "reportagem". Era uma espécie de reflexão ponderada, um ensaio compacto de escrita cuidada, uma pequena jóia que só alguns conseguiam alcançar. Um "cronista" dos nossos dias (que nós ainda misturávamos com os cronistas medievais) era alguém capaz de produzir opinião, mas também literatura. E alguns exemplos eram lidos e mostrados nas aulas. Qualquer um podia fazer entrevistas e escrever notícias. Mas crónicas não.
Quase três décadas passadas, é com um misto de sorriso sarcástico e de sabor amargo que verifico que uma boa parte das "crónicas" que a nossa imprensa produz, diária ou semanalmente, não passa de um caldo de banalidades, mau português, egos inflados, agenda política e fel, muito fel. A reflexão avisada deu lugar à bojarda, a opinião lúcida cedeu terreno ao ataque pessoal, a crítica fundamentada recuou perante a insinuação, sugerida com duvidosa intencionalidade, quando não a simples intriga a roçar a calúnia. Nem falo da qualidade do português; basta-me a ausência de ironia, de delicadeza, de recorte literário. A linguagem tem a estética de um calhau de calçada, a limpidez de um naco de carvão, o sabor de uma malga de caldo insípido. É literariamente inerte e estilisticamente desinteressante. Crónicas para brutos.
Vem isto a propósito da mais recente "crónica" de Henrique Raposo no Expresso. Um jornal dito de "referência", o semanário de maior tiragem nacional. Ou um blog caceteiro? Fiquei com dúvidas. No texto, o autor não é capaz de alinhavar duas ideias coerentes. E originais, já agora, se não fosse pedir muito. Podia elaborar uma reflexão sobre o sentido de voto do PS no Orçamento de Estado; uma análise política; ou económica; ou ambas. Podia debruçar-se sobre o interior do partido, as suas fraturas e desafios; podia tentar um ensaio sobre as orfandades políticas em Portugal; ou, até, um exercício irónico sobre bonecreiros, marionetas, fiozinhos de nylon ou controles remotos, uma vez que o tema escolhido gira em torno das alegadas pressões e influências de José Sócrates junto do PS. Em vez disso, Henrique Raposo assume-se como alambique de ressentimentos e de maldizer, destilando fel insosso sobre a "gentinha socrática", "esta fauna" e os "leãozinhos [sic] de Sócrates". "Gentinha"; nem é capaz de dizer nomes. Um raciocínio pobre e falacioso, uma exposição rasteira e rancorosa, um texto bruto e grunho. Não faltará muito, adivinho, para se descer mais um degrauzinho na degradação cronística e passar-se à obscenidade. "Os cabrões dos apoiantes do filho da puta do Sócrates". Lá chegaremos.
Já agora, um acrescento: uma vez que o "gentinha socrática" já ganhou espaço na nossa imprensa, como se poderá começar a apelidar os apoiantes indefetíveis do atual primeiro-ministro, como Raposo e outros? "a ralé leporídea"? "a canalha cunícola"? ou simplesmente "as caganitas de Coelho"?


Paulo Pinto, no texto que escreve—"Crónicas para Brutos"— critíca as palavras que se dignam a ultrajar e que desprezam o glamoroso significado de uma crónica. De onde surge a necessidade de criticar o uso de um texto a que um tal de cronista nomeia como sendo produto do nome de que se orgulha que se lhe chame? Paulo Pinto mostra-se indignado, atiçado e sofrido com este reles hábito de sobrevalorizar um texto que não passa de um "caldo de banalidades", mal escrito, pobre a nível intelectual e pouco inteligente.

Henrique Raposo é a peúga perdida no meio de tantas outras sujas que vagueiam entre significados e conceitos que existem, mas que hoje por eles e muitos outros são desconhecidos. Será que ainda alguém conhece um bom significado de crónica? Será que hoje ainda é possível que se escreva uma crónica? Paulo chama-lhe "espécie de reflexão ponderada, um ensaio compacto de escrita cuidada, uma pequena jóia que só alguns conseguiam alcançar". É nesta opinião que se apoia para fundamentar o artigo que escreve. Ou será uma crónica?

Paulo acusa Henrique que acusa o PS socrático. Acusa o que acusa porque acusa. Mas fazem-no de maneira bem diferente. Na humilde opinião a que temos direito, enquanto meros estudantes universitários, entendemos que na "crónica" do conhecido cronista do jornal Expresso Henrique Raposo —"bullying de sócrates sobre seguro"— revela-se pouco inteligente e faz uso de um vocabulário triste e uso de um tom desnecessário à revelação de factos. Mas uma crónica não é uma reportagem nem uma "agenda política". Não interessa ao leitor que lê uma crónica, saber de dados concretos, de valores, de "3,4 mil milhões". Não interessa ler ironia forçada e que só não roça ultrapassa o maldizer e o difamar de uma classe política, quando diz "sim, o nosso querido líder deixou um buraco descomunal". E tudo simplesmente apoiado numa vontade frenética de rebaixar o grupo político a que se refere. Porquê? Provavelmente nem o próprio sabe o que o levou a escrever esta nota na toalha de papel do restaurante do café central dos brutos que comentam o futebol e fazem alusão às meninas da noite ou madrugada do dia que vivem.

No grupo concordamos com Paulo Pinto; que uma crónica deve ser detentora de uma escrita cuidada e exemplar, com uma excelente utilização de recursos estilísticos e bom português. Mas o texto de Henrique "grita. Grita muito". Já os dados que são revelados não devem sobrepor-se à opinião do autor, mas sim apoiá-la como ferramenta de argumentação. Já para não falar dos "(apartes)" teatrais que faz quanto ao uso dos parêntesis. Piada fácil, humor fraco e simples. Henrique Raposo constrói o seu texto com insinuações e ideias pouco concretas. Limita-se a apontar o dedo ao que considera estar errado e sente ser a verdade. Mas não o faz nem com classe nem com ironia. É bruto. E é cronista.

Seria mais interessante não sentir o desprezar arruaceiro de Henrique pelo partido que critica e muito menos sentir falta de sensibilidade que faz dele Homem ou rapaz que escreve coisas "escrevidas".

Quanto ao texto do Paulo Pinto, há concordância dentro do grupo. Um texto bem estruturado e que não cansa. Se uma crónica é, e volto a repetir, "espécie de reflexão ponderada, um ensaio compacto de escrita cuidada, uma pequena jóia que só alguns conseguiam alcançar", ficamos com vontade de chamar à opinião escrita de Paulo Pinto crónica. Mas ficamos tristes com o fim da reflexão que fez, pois sentimos que desce um pouco ao nível do Henrique Raposo, quando usa vocabulário chocante como "Os cabrões dos apoiantes do filho da puta do Sócrates". Sentimos que é desnecessário o parágrafo que se segue, pois está simplesmente a carregar na ferida mais e mais fundo. Ao mesmo tempo que sentimos que está validada a linguagem que aqui usa, dada a coerência e eficácia que consegue na exposição, não dos factos, mas das ideias que lhe correm seguras, protegidas e "patriotas", e que são seguramente entendidas como ironia feita ao texto que analisa de Henrique Raposo.

"As carpideiras"

Na passada quinta a Casa Fernando Pessoa organizou uma sessão dedicada ao tema “Os Clássicos devem ou não ser estudados na Escola?”. Para discutir o assunto estavam na mesa Vasco Graça Moura, Maria Filomena Mónica, Clara Ferreira Alves — além do moderador Carlos Vaz Marques, o escritor Gonçalo M. Tavares (que não é meu primo) e o editor Guilherme Valente, que também participou vivamente no debate. Todos os oradores, sem excepção, defenderam o dever de se estudar os Clássicos na escola. Diferenças apenas houve de método, ou de definição do conceito de clássico, ou da necessidade de um “cânone” de autores: Vasco Graça Moura abriu uma excepção para o inquilino da casa, Fernando Pessoa, ao passo que Filomena Mónica recusou terminantemente que se ensinassem autores do século XX.

Na sala cheia toda a gente estava a favor dos clássicos; gerou-se o consenso de que o melhor método para ensinar os clássicos era o que cada um defendia, e que o dos outros era provavelmente desastroso.


E ainda estou para compreender como é que um debate tão uniforme gera paixões tão diversas: a dada altura Filomena Mónica sugeriu sotto voce que talvez que a única solução fosse a de fuzilar os professores e começar tudo de novo, e os membros da associação de professores abandonaram a sala antes que a oradora tivesse a possibilidade de lhes fazer o que Ahmadinejad gostaria de fazer aos israelitas.

Eu juro que um dia gostaria de ver alguém, num destes debates, fulminar contra o ensino dos clássicos. É um anseio mórbido, um pouco equivalente ao de querer que o vilão destrua num golpe seco o galã, num filme americano, ou de torcer por Leôncio a cada episódio de A Escrava Isaura — esse clássico da telenovela brasileira —. Espero por esse momento de clímax satânico mas rapidamente me vergo à realidade. Também eu sou a favor de que se tratem bem as velhinhas. Também eu sou a favor de que se conduza com cuidado. E também eu, o fraco, o caixa-de-óculos, o rato de biblioteca, sou a favor de que se ensinem os clássicos. Acima de tudo, também eu gostaria que se atacassem os clássicos para me poder erguer e, tonitruante, me declarar o último e mais sincero defensor dos clássicos. Mas a última vez que alguém desprezou os clássicos neste país foi, desgraçadamente, um clássico (morreu em 1900, portanto entra por uma unha negra no cânone): Eça de Queirós, em A Cidade e as Serras (“Menino, sinceramente me gabo de nunca ter lido a Ilíada”, como bem lembrou Graça Moura).

E, por isso, quando me levantei para falar só fui capaz de debitar a lista de clássicos que estudámos na minha Escola Secundária em finais da década de 80, numa escola pública que nunca entrou sequer na 200 melhores do ranking e em plena terra queimada dos “filhos de Rousseau”: o cancioneiro galaico-português, Fernão Lopes, Gil Vicente, a Tragédia Castro, a lírica e a épica camoniana, a parenética vieiriana e por aí adiante até Herculano, Garrett, Camilo, Eça e — ai de nós — Fernando Pessoa. Pelo menos estes, quem quis aprender aprendeu. Faltaram os clássicos de outras línguas ou até da nossa própria: se Machado de Assis fosse ensinado nas nossas escolas já os Pedro Santana Lopes não precisariam de escrever cartas de agradecimento ao já bem morto e enterrado escritor brasileiro.

De nada vale, contudo, escrever num jornal que sim se ensinam os clássicos na escola: os jornais, os colunistas de jornais, os leitores de jornais, os directores de jornais já sabem que não é verdade. Sentem que são os últimos dinossáurios. A élite portuguesa está plenamente convencida de que na escola se ensina a jogar playstation. Nenhuma informação em contrário penetrará nessa barreira ideológica, social, cognitiva. Pergunto se não será esse mesmo ciclo a definição de um estado falhado que pretendemos todos evitar: aquele que se recusa a identificar os sinais da sua progressão, a aprender com eles e a fazer por reforçá-los?

Ficamos assim condenados a começar do zero, a anunciar a descoberta da pólvora em cada artigo, a uma declaração permanente da morte da escola democrática. Ficamos assim condenados a um lugar-comum que vem da Antiguidade Clássica: carpir os clássicos. Mas atenção que as carpideiras são, regra geral, os piores inimigos do defunto. Enquanto se esforçam por mostrar que sofrem mais do que os outros pela sua morte, é como se o matassem pela segunda vez. Nenhum adolescente passou a gostar da tia-avó desta maneira. Os verdadeiros amigos estão no bar a contar as histórias do morto. Enquanto continuarem a fazê-lo, ele ainda não morreu de vez.

O texto "As carpideiras" de Rui Tavares faz uma crítica a um evento organizado na Casa Fernando Pessoa cujo tema era "Os Clássicos devem ou não ser estudados na Escola?".

Um pormenor que salta à primeira vista é o título— as carpideiras. Duas conclusões apontamos a priori. Porquê usar um termo que existe há já dois mil anos, que dá significado às mulheres que eram contratadas, e quem sabe se não são ainda hoje, para chorar a morte de defuntos anónimos desprezados pelo mundo ou só pela sociedade a fim de encenar e mascarar uma dor que não se sente. E porquê este conceito? Porque e o que chora o Rui?

Rui Tavares introduz o texto de uma forma assertiva e "guerrilheira" quando diz que se quer "declarar o último e mais sincero defensor dos clássicos". Mas é essa a conclusão que tira?

Depois de uma breve apresentação dos oradores que participaram na sessão de esclarecimento das dúvidas que restam ainda hoje ao Estado e nos custa horas de trabalho inútil, conclui que todos defendem o estudo dos autores Clássicos, mas todos divergem na forma de os leccionar. Ora, neste ponto a opinião do nosso grupo de trabalho diverge. Duas ideias são discutidas e tendem a não ceder sobre argumentos que se anulam mutuamente. Uns defendem só o estudo do clássico. Outros porém defendem também o estudo dos escritores contemporâneos. Quem defende os clássicos argumenta com o pouco tempo de aulas para a densidade de matéria com que nos confrontamos na disciplina de Língua Portuguesa e com o facto de se tratarem de autores que marcaram a história pela qualidade da sua escrita e como é sabido, se não conhecemos o que é bom e não partimos dessas bases, acabamos por fazer um percurso autónomo e ignorante. Ou seja, se quiséssemos conhece-los, teria de partir de nós, da nossa iniciativa, e como sabemos, cada vez mais as gerações enraízam-se aos sofás e pregam olhos nos cubos mágicos, que hoje não cubos, parecem mais placas de esferovite de 5mm. Quem defende o contemporâneo, acredita que a escrita dos dias que correm consegue chegar a uma massa maior, dada a sua fluidez e uso dos nossos calões, associados ao poder libertino da nova folha de papel, o computador, e que fomenta e incentiva, pela sua simplicidade e pelo suave uso de recursos estilísticos, a leitura. Conclui ainda este lado, que o estudo dos escritores contemporâneos serviriam assim como um incentivo à leitura, ou seja, não substituem os clássicos, mas procuram um chegar mais eficaz à educação e a sensibilização da leitura, que é cada vez mais rara e menos procurada por todos.

O autor do texto que analisamos tenta no quarto parágrafo desvalorizar os argumentos que ouve e fixa vindos de quem, à partida, sabe do que fala, entre escritores, professores, políticos, sociólogos e jornalistas. Faz ainda alusão a um escritor brasileiro— Machado de Assis —um escritor que morreu em 1908 e a quem o bem conhecido Pedro Santana Lopes escreveu cartas de agradecimento, por o desconhecer morto há décadas. Um comentário que não é necessário ao conteúdo e ao que se discutiu na Casa Fernando Pessoa ou neste texto, mas que serve para despertar a nossa atenção ao que Rui Tavares escreve, pois trata-se de um pormenor giro e de fácil compreensão.

Rui Tavares conclui a conclusão não concluída. Ficamos na mesma. E explica o título— "carpir os clássicos". Lembra ainda que as carpideiras são as piores inimigas do defunto, argumentando que enquanto se esforçam por mostrar que sofrem a morte de um alguém diferente do que nos é comum, matam-no uma segunda vez, pois "nenhum adolescente passou a gostar da tia-avó desta maneira".